Desejo e ética: o lugar da transgressão no relacionamento amoroso.*

Maria Silvia Pessoa – Analista Junguiana

 

A relação íntima entre duas pessoas está baseada em inúmeras expectativas, entre elas, de completude e reunificação. Essa busca, apesar de ser importante no movimento do encontro entre duas pessoas, muitas vezes, dificulta a conscientização que precisamos desenvolver no decorrer do relacionamento, para, assim, encontrarmos em nós mesmos aquilo que inicialmente buscamos no outro.  Essa retirada da projeção inicial é essencial para o amadurecimento da relação, mas pode ser vivida com estranhamento, sofrimento e, até mesmo, como uma forma de traição.

A traição está presente em todos os tipos de relação, e na conjugalidade ela se coloca a partir do momento em que confiamos, pois, ao confiarmos, inevitavelmente, abrimos a possibilidade para trairmos e sermos traídos em relação aos nossos sonhos, expectativas, desejos (CARATENUTO, 1997; FONTANA, 2015).

Trazemos, por exemplo, em nosso inconsciente cultural, a ideia de que os relacionamentos conjugais são intocáveis, santuários que comportam os valores legítimos, lugares protegidos e blindados de expressão de sexualidade lícita, de afeto e desafetos. Essa fantasia nos está tão amalgamada, que reagimos contra uma eventual ameaça à “estabilidade” do casamento ou da promessa de amor do outro para conosco como uma instituição. Como refere Nietzsche (2012), o casamento, como instituição legítima, sustenta a crença de que o amor verdadeiro é longevo e pode ser construído e mantido por meio de regras.

Como instituição, o relacionamento legítimo tem seu “regimento”, e os cônjuges, por sua vez, também constrõem seus próprios contratos explícitos e implícitos, os quais podem incluir inúmeros itens, como exclusividade, fidelidade, invariância, atribuição de papéis, hierarquia, fidelidade.

Os contratos implícitos e até mesmo inconscientes, não falados e não atualizados, formam a base para uma dinâmica conjugal patriarcal rígida, que, longe de proteger, instala uma vulnerabilidade entre os parceiros, posto que engessa afetos, priva o prazer e a espontaneidade e “desalma” o indivíduo, empobrecendo sua vida imaginativa e exigindo cada vez mais atitudes defensivas. Parte-se, então, para um casamento caracterizado por uma persona defensiva, que até pode ser longo, duradouro e respeitável, mas, por um lado, empobrecedor, uma vez que não há lugar para o desejo, estancando o processo de individuação de seus membros.

A história de Adão, Eva e a serpente no paraíso ilustra a instalação da falta e  o surgimento do desejo. Muitos não querem saber qual é o seu desejo, porque poderia parecer muito perturbador.

No entanto, o desejo é o caminho da vida e, se o desconhecemos, não seguimos nós mesmos, mas em direções alheias, que nos levam a caminhos estranhos, que outros nos indicaram.

O desejo é arquetípico e, como tal, não pode ser controlado por regra. Então tenta-se controlar sua expressão, mas a psique não se cansa até libertá-lo via conscientização. O homem é um ser ambíguo e desejoso; e em seu processo de individuação, coloca-se em busca da completude e da unicidade. Assim, ele está fadado à insatisfação, o que alimenta o desejo é justamente a falta e esta passa pelo  Outro, precisamos do outro para nos encontrar, para nosso autoconhecimento.

Em nosso ofício de analistas, estamos familiarizados com situações em que o desenvolvimento do indivíduo está ligado a uma vivência transgressora: um amor proibido, uma ideia que abala uma estrutura convencional, um gesto que desafia a ordem estabelecida.

Os mitos expressam atos transgressores e revolucionários, o desejo se pronuncia simbolizado pelo comer do fruto proibido, pelo roubo do fogo e por tantos outros. Eles sinalizam o caminho do desenvolvimento da Consciência, revelam o desejo e, ao mesmo tempo, trazem consequências àqueles que ousam transgredir o preestabelecido.

Jung, em sua obra, defende a ideia de que a repressão do elemento transgressor nos deixa dentro dos limites preestabelecidos, convencionais, aquém da capacidade do potencial criativo de cada um de nós. Vale ressaltar que não estamos falando aqui de qualquer transgressão, por exemplo, aquela caracterizada pelo individualismo e por conquistas permeadas pela superficialidade, pelas vivências efêmeras e descartáveis. Nesta, evitamos a reflexão, a dor e a superação, e não alcançamos a função transcendente – conceito desenvolvido por Jung. Falamos, sim, da transgressão “animada”, tocada pela ânima, que move o desejo mais profundo do homem, aquele ligado à sua essência, sua aretê. Ao trilhar esse caminho de busca, considerando o processo de individuação e tudo o que ele envolve, faz-se necessário considerar o Outro enquanto indivíduo diferenciado. Nesse momento, encontramo-nos eu-outro, num contexto maior, coletivo e social.

E então, somente saindo de uma condição egocêntrica, o homem pode ser tomado pela consciência de que há algo maior lhe chamando. Ele já não consegue, por muito tempo, enganar-se e enganar o outro com o qual convive quanto às intenções de suas ações. Ele não pode ignorar a questão do desejo, mesmo que esta lhe seja inconveniente com relação à situação vigente.

Desse modo, o homem é colocado diante de uma questão ética com o outro e consigo mesmo (CATELLI, 2012). A ética social encontra-se em potencial dentro de cada ser humano, como alguns valores: a criação do homem, competência para cuidar da criação, consciência própria e para com o outro, senso de justiça. Ética: escolher o que é bom para o seu processo e o melhor para o coletivo.

A consciência, quando reflete a si mesma no estado de autoconsciência, percebe os próprios limites. Ela não tem acesso ao inconsciente, mas pode explorar os seus limites quando conectada a ele. É por meio dos símbolos que o Ego pode se orientar e seguir o desejo que “aparentemente” desconhece (ASSUMPÇÃO, 2017).

Precisamos nos interrogar sobre o nosso desejo e nos fazer responsáveis por ele. Assim, citando Lacan (1991), podemos levantar as questões: Qual é o teu desejo? Onde ele habita? Como vou ao seu encontro?

Ao confrontar-se com uma situação particular que envolve um dilema difícil, deparamos com o desejo e a ética. A interação entre a consciência e o inconsciente é o que favorecerá a necessária criatividade para uma resolução à qual o indivíduo possa aderir integralmente. Podemos encontrar um princípio que pode nos oferecer um ponto de vista e um futuro sem “garantias”. Mas podemos, sem titubear, responder à questão: “Você agiu conforme o teu desejo?”.

Nessa situação, obviamente, estão implicadas questões como perda, solidão da escolha e capacidade de responder por nossos atos….

Para Jung, a função moral e ética está ligada à lealdade a si mesmo. Respeitá-la é a forma de encontrar o caminho para curar-se a si próprio (JUNG, 1977). Ainda segundo o autor: “Sem desejar, nós, seres humanos, somos colocados em situações nas quais os grandes ‘princípios’ nos enredam em alguma coisa, e Deus deixa a nosso cargo achar uma saída” (JUNG, 1978, §. 869).

Assim, o desejo e a transgressão, somente quando elaborados e ressignificados, propiciam um dinamismo de alteridade, levando os parceiros amorosos ao encontro consigo mesmo e com o outro.

Inconfesso desejo

Queria ter coragem
Para falar deste segredo
Queria poder declarar ao mundo
Este amor
Não me falta vontade
Não me falta desejo
Você é minha vontade
Meu maior desejo
Queria poder gritar
Esta loucura saudável
Que é estar em teus braços
Perdido pelos teus beijos
Sentindo-me louco de desejo
Queria recitar versos
Cantar aos quatros ventos
As palavras que brotam
Você é a inspiração
Minha motivação
Queria falar dos sonhos
Dizer os meus secretos desejos
Que é largar tudo
Para viver com você
Este inconfesso desejo

(Autor Desconhecido)

* Palestra proferida em Outubro/2017: VI Simpósio de Psicologia Analítica da UNIP – Ética & Amor.

Texto completo: site www.internamente.com